Especialistas da The Nature Conservancy Brasil explicam por que o atual volume de queimadas não pode ser considerado "normal" e apontam prejuízos à biodiversidade
* POR MÁRIO BARROSO, MARIANA SOARES E EDENISE GARCIA, DA THE NATURE CONSERVANCY BRASIL
Todo ano nos deparamos com queimadas e incêndios que ocorrem principalmente nos biomas Cerrado e Amazônia. A cada estação seca que chega, vemos as imagens fortes de áreas em chamas, bichos morrendo, pessoas sendo afetadas. Neste ano, a esses dois biomas adiciona-se o Pantanal, com quase um quinto de seu território de 15 milhões de hectares afetado pelo fogo.
O Pantanal é uma extensa planície de inundação cuja maior parte está localizada no Brasil, mas também compreende terras na Bolívia e no Paraguai. Longe de ser uma unidade homogênea, cada região do Pantanal tem suas próprias características de vegetação e ritmo de inundações, como Nabileque, Rio Negro, Nhecolândia, Paraguai, Miranda, Melgaço, entre outras. De forma geral, existem um ou mais pulsos de inundação durante o ano que fazem com que os rios extravasem suas calhas e inundem extensas regiões.
Entre janeiro e junho deste ano, de acordo com dados do Centro de Arquivo Ativo e Distribuído de Processos Terrestres (LP DAAC) da Nasa, 330 mil hectares do Pantanal foram queimados, quase o dobro da área afetada pelo fogo no primeiro semestre de 2019 e 30% mais que a soma de toda área queimada no mesmo período entre 2016 e 2019 (como pode ser visto no gráfico acima).
E o cenário entre julho e setembro parece ser muito pior, com uma área queimada estimada em mais de dois milhões de hectares, já que, nesse período, a seca, os ventos e a ação humana tendem a ser mais acentuados. De fato, o número de focos de calor desde o início de julho (conferir gráfico abaixo) já é três vezes maior que o observado em 2019 e cinco vezes maior que a média de focos de 2016 a 2019 , segundo dados coletados pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) até o dia 20 de setembro.
Mas por que isso ocorre? Quais são as consequências? Todo fogo é igual? As respostas a essas perguntas são fundamentais para entender esse problema complexo e de grande impacto que tem se exacerbado não apenas no Brasil, mas em muitas partes do mundo.
Por que o fogo ocorre?
Sempre que houver acúmulo de combustível e condições meteorológicas favoráveis há o risco de ocorrência de fogo. O combustível geralmente é composto por restos vegetais secos, incluindo tanto folhas mortas quanto capim vivo, e material lenhoso fino, como galhos e gravetos. Já as condições meteorológicas estão relacionadas a longos períodos de estiagem, com queda da umidade relativa, altas temperaturas e, para piorar, ventos fortes ou constantes. Mas o fogo só vai ocorrer se houver uma fonte de ignição. Fogo de origem natural é pouco provável e pode estar associado à combustão espontânea, um evento extremamente raro, ou a descargas elétricas (raios), nas transições de estações ou nos “veranicos”, períodos curtos de seca que ocorrem no meio de estações chuvosas. Portanto, de longe a mais importante causa de ignição de fogo é o homem, seja por ação intencional ou acidental.
Todo fogo é igual?
Não, os efeitos do fogo variam segundo suas características – como intensidade e persistência –, assim como em função de sua recorrência e, acima de tudo, com o tipo de ambiente impactado. Existem diferentes resistências e resiliências em relação ao fogo. Lembrando que a resistência ao fogo é o conjunto de características microclimáticas e da vegetação que impedem ou reduzem em muito sua ignição e propagação. Já a resiliência ao fogo é a capacidade do ambiente queimado retornar ao mesmo estágio de organização após a ocorrência de uma queimada.
Assim, uma floresta úmida, como a que encontramos em grande parte da Amazônia e Mata Atlântica, em condições normais, dificilmente queimaria. Nesses ambientes os organismos não possuem adaptações de proteção ao fogo e, caso isto ocorra, os danos são extensos e a recuperação pode levar dezenas de anos para acontecer. Essas áreas são consideradas como sensíveis ao fogo (veja mapa abaixo). O Cerrado e o Pantanal possuem vegetações mais resilientes e, consequentemente, menos sensíveis. No entanto, de acordo com a severidade, o fogo pode alterar a estrutura e o funcionamento dos ecossistemas nesses biomas.
A segunda distinção dos efeitos de fogo diz respeito à época de ocorrência. Quanto mais seco, quente e ventoso o momento da queima, mais intenso e danoso é o fogo. E é justamente na época seca que o fogo associado à limpeza de pastos, preparo de plantios e desmatamentos é mais frequente, e quanto mais tempo uma área recém-queimada fica exposta ao tempo seco, piores as consequências para a rebrota da vegetação e para a fauna.
O fogo natural, por sua vez, ocorre em períodos de clima mais ameno e com grande possibilidade de chuva logo após o evento de queima; por essa razão tende a ser mais brando e menos extenso, possibilitando a recuperação rápida da vegetação, sem afetar profundamente os habitats nem a oferta de alimento para a fauna.
O terceiro fato a se observar em relação aos efeitos do fogo é a sua recorrência, pois pode haver efeitos cumulativos relacionados à frequência ou ao intervalo de tempo entre as queimadas. Queimadas frequentes tendem a selecionar as espécies mais resistentes e eliminar as mais sensíveis. Intervalos curtos de queima podem interferir nos processos de floração, frutificação e estabelecimento de plântulas, alterando a estrutura da vegetação, eliminando, por exemplo, as árvores e tornando a fisionomia mais campestre.
Quais as consequências do fogo?
Os primeiros efeitos do fogo são os mais evidentes: a elevação da temperatura e a queima do combustível. Os efeitos imediatos do aumento de temperatura podem ser fatais para a própria vegetação e para animais que não conseguem fugir ou não apresentam proteções especiais. Já a queima do combustível transforma a biomassa em fumaça e cinza.
No curto prazo, até pode haver uma fertilização, principalmente pela mudança do pH, mas em incêndios mais severos, além da produção intensa de dióxido de carbono (CO2) e monóxido de carbono (CO), os nutrientes voláteis — principalmente nitrogênio, fósforo e enxofre — literalmente vão embora na fumaça. Nas cinzas ficam parte da celulose queimada parcialmente e alguns nutrientes não voláteis, como o potássio. Esses nutrientes perdidos tendem a voltar com o tempo, seja pela atividade biológica (nitrificação) ou pela água das chuvas, que carrega pequenas porções dos nutrientes exportados pela queima.
Após um fogo severo, a perda de parte ou totalidade da vegetação superficial muda de forma significativa o balanço de energia da área. As cinzas escuras ajudam a absorver o calor do sol e as temperaturas do solo podem se elevar de forma significativa, aumentando a evaporação de qualquer água que ainda reste no solo. Em ambientes florestais, após o fogo, a entrada de luz também altera o microclima, facilitando a propagação de espécies invasoras e alterando a composição da flora. As transformações na vegetação do pós-fogo afetam diretamente a fauna que conseguiu sobreviver às chamas.
Esse entendimento da dinâmica do fogo e das respostas dos diferentes sistemas naturais é fundamental para o estabelecimento de linhas de ação de comando e controle bem estruturadas para evitar incêndios criminosos, assim como de ações de prevenção. O bom manejo das terras agrícolas, seja de pasto plantado ou seja de agricultura, evita o uso do fogo, como indicam estudos sobre alternativas a queimadas. Além disso, as áreas de vegetação natural no Cerrado e Pantanal podem ser manejadas para evitar o acúmulo de combustível e incêndios devastadores.
Não é porque o fogo ocorre todos os anos que ele deve ser visto num contexto de normalidade. Ao contrário, o aumento na frequência de incêndios severos atingindo áreas cada vez maiores deve soar um alarme, sobretudo porque esse cenário é resultado da ação humana. Além disso, esses incêndios tendem a se tornar cada vez piores devido ao aumento da temperatura e dos períodos de seca em boa parte do território brasileiro como resultado das mudanças climáticas que estão sendo aceleradas por estes mesmos incêndios.
*Mario Barroso é coordenador de monitoramento, Mariana Soares é especialista em ciências e Edenise Garcia é diretora de Ciências na The Nature Conservancy (TNC) Brasil
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